O presidente sem autocensura
Editorial Estadão
O presidente, definitivamente, não possui o que o público chama de desconfiômetro. Quando lhe faltam argumentos racionais para defender suas teses, desanda a afirmar coisas de que em geral as pessoas, que dirá um chefe de Estado, poupam os que as ouvem, quanto mais não seja para resguardar a própria dignidade. De toda maneira, o que parece contar para Lula e o que o empurra para longe de qualquer vestígio de decoro é o intento de dar o seu recado, quantas vezes julgar necessário - e o resto que se lixe. O exemplo da hora, naturalmente, são as suas demonstrações públicas de alinhamento incondicional com o presidente do Senado, José Sarney, imerso em evidências irrefutáveis de malfeitos que o despojaram das condições mínimas para continuar no cargo e conservar o mandato.
Lula parece acreditar que as suas ações em socorro do seu principal aliado no Congresso, de quem se converteu no mais vistoso guarda-costas, não apenas haverão de garantir a sua invulnerabilidade, como ainda o farão se lançar com entusiasmo na duvidosa empreitada de unir o PMDB ao redor da candidatura Dilma Rousseff em 2010. Além de agir, enquadrando, por exemplo, a bancada petista no Senado, ansiosa por se dissociar do oligarca - se não em nome da ética, pelos cálculos eleitorais da maioria dos seus membros -, Lula acha que precisa mostrar a Sarney, por palavras, que se identifica plenamente com o núcleo da sua autodefesa, que ele externou no discurso de 16 de junho: a sua biografia o torna inimputável. (O que a opinião pública pensa disso não vem ao caso.)
Dois dias depois, no que o presidente-torcedor poderia chamar de jogada ensaiada, Lula declarou, para assombro dos repórteres que o acompanhavam ao Casaquistão, que Sarney não pode ser tratado como "pessoa comum". E foi isso, numa versão verdadeiramente escandalosa, que ele reiterou anteontem na solenidade de posse do novo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Envergonhando o emblema da República que adornava a tribuna de onde discursava, Lula advertiu o Ministério Público (MP) a não atuar "pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação" - por si só, uma insinuação próxima do insulto -, mas "pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado". Ou seja, o MP não pode esquecer que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros. Aqui já se trata de teatro do absurdo.
Antes, Lula aconselhara o MP a "investigar fatos, tirar as suas conclusões e tomar as providências coerentes com elas", como se não fosse exatamente isso o que fez o então procurador-geral Antonio Fernando Souza, no caso do mensalão, indiciando 40 suspeitos, de variadas biografias, como membros de uma "sofisticada organização criminosa" interessada em "garantir a permanência do partido (o PT) no poder". A vida pregressa de um réu somente pesa - como circunstância atenuante ou agravante - na hora do julgamento. Não se ofenderá a inteligência do presidente da República sugerindo que possa ter confundido as condutas apropriadas aos agentes públicos em cada etapa do devido processo legal.
Lula não é um néscio: o seu problema, ou melhor, o problema do País, sob a sua liderança, é a sem-cerimônia com que dá ao povo que o admira um exemplo perverso de como tratar as instituições. Elas têm sido a primeira vítima de sua obstinação em conseguir o que pretende - controlar o processo político e fazer a sua sucessora. Ele deve imaginar que a sua excepcional biografia a tudo o autoriza. Tanto pior.
Correção - No editorial Linhas ocupadas, publicado ontem, onde se lê "Passados oito dias, Agaciel Maia assina o ato - secreto - de nomeação do namorado da filha do senador", leia-se "da neta do senador".
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