Antigo conto citado por Ruy Barbosa, no Senado.
O PERDIGUEIRO E O TATUAÇU.
"Um perdigueiro, da matilha de certo lavrador, estabelecido na encosta de um dos morros que dominavam o cemitério de uma aldeia, em uma noite de luar claro, sondando com a vista aguda, o panorama, que se lhe estendia debaixo dos olhos, deu, ao longe, com um vulto que se mexia entre as sepulturas. Fitou bem a pupila. Não havia dúvida. Era um tatu gigante que se fartava em uma cova. O cão não podia hesitar. Pôs a boca no mundo, e, em linguagem inteligível aos seus semelhantes, preveniu da novidade a todos os vigias da circunvizinhança. De casalejo em casalejo, de granja em granja, de canil em canil espertou a canzoada, e começaram a entrecruzar-se nos ares os latidos. O mesmo sentimento correspondia em todos ao apelo do primeiro que dera o rebate. Foi uma batida geral. Das rampas das colinas e dos recantos da esplanada a ladrar e ganir em caniçada estrepitosa, toda a cainha das imediações correu, voou contra o perturbador da tranquilidade dos mortos. Mas debalde. O necrófago, alentado pela digestão de um repasto copioso, e levando aos seus perseguidores a vantagem da distância inicial, acolheu-se à toca, ali perto, deixando lograda à boca da lura a caninçada bravia. Dir-se-ia que estava assim ultimado o incidente. Mas a honra dos tatus não ficava satisfeita. A república dos animais não podia abandonar à má língua dos ladradores a reputação de uma individualidade tão excelsa e de uma classe tão egrégia entre os viventes. Na manhã seguinte, pois, a um chamamento solene do ofendido se reunia à sombra, num vão do mato, protegido pela ramaria de uma capoeira, a reunião dos bichos, curiosos e solícitos do bem da comunidade. Era de ver como todos acudiram aos deveres da afinidade ou da aliança. Em socorro dos tatus, rodeando os tatus-canastras, os tatuapés, os tatupebas, os tatus-galinhas, os tatus-bolas, se aglomeravam os fossados de todo o gênero, a raça inumerável dos cavadores e os roedores, infinitos em número. A família canina, cães, caniços, carnazes, de toda a marca, viu-se em triste minoria. Mas toda ela testemunhou do sacrilégio, a que assistira na madrugada precedente. Eram às dúzias os depoimentos. Toda a gente, humana ou animal, das cercanias, sabia do fato. E demais ninguém ignorava que os tatus de todas as categorias, fossões por natureza e necessidade, a outra coisa não se davam senão a devastar as plantações e pastar nas valas dos mortos. A voz pública já os julgara e condenara. A acusação assim articulada, com a audiência de inumeráveis testemunhas, ocupou muitas sessões. Mas, porém, depois de ouvidos os depoimentos acabara de orar o querelante, entrou a defesa a lhe pulverizar o libelo. Verdade seja que orçavam por centenas as testemunhas de vista, todas cabais, todas contestes, e que a notoriedade pública ainda as reforçava. Acima de tudo, porém, estava a respeitabilidade pessoal do acusado, que, pela sua situação, pela sua gravidade, pelos seus serviços, pairava, acima de todos os botes da maledicência; e vários oradores, qual a qual com mais eloquência, se indignaram de que, contra um bicho tão eminente, se tolerassem acusações, embora estribadas em montanhas de provas. Fossadores, cavadores e roedores eram unânimes, ali nesta doutrina salutar. Os fossadores, ainda aparentados com o réu, pela tromba e seu uso, fazendo-se ouvir pela voz de um porcaço, varrão, alegaram que, para morder e atassalhar em carne, viva ou morta, necessário era ter bons dentes, e, se os tatus os tivessem, não seriam classificados como são, na ordem dos desdentados. O auditório pasmou com a sabedoria deste pensamento de truz, e um arrepio de entusiasmo. Os tatus podem se considerar santos de nascença. Não pecam. Na sua entidade encouraçada, não penetram as tentações do mundo. Aos derradeiros golpes desta lógica o Tribunal rompeu em aplausos, a veneranda bicharia, num Ímpeto geral, exigiu que se votasse, e o réu, absolvido por aclamação unânime, agradeceu com o focinho tolheu as expressões de espanto das gargantas dos circunstantes. Então, rompendo o silêncio que se fizera, discursou, em nome dos cavadores, uma toupeira de pelo negro e lustroso, que, artista experimentado em solapar os melhores alicerces, chamou a atenção dos ouvintes para a couraça dura e escamosa, que revestia o dorso do acusado, observando que o Criador não teria envolvido neste múltiplo escudo o corpo daquela criatura, liberalizando-lhe proteção tão eficaz, e dando a ver assim o apreço, em que a tem, se debaixo deste casco impenetrável não se aninhasse um tesouro de virtudes. A isto os Juízes, numa emoção que se não continha, agitaram a focinheira, os apêndices posteriores, as patas de vário feitio, e para logo se viu que o tribunal estava convencido. Ainda assim, conquanto já por demais, no meio de um recolhimento que deixava escutar-se o voar dos menores insetos, toma da palavra, para dar a opinião dos roedores, o caxingue.