O palanque do São Francisco
É um acinte. Lula se vangloria de ter a coragem de pôr em marcha uma ideia que remonta ao imperador Pedro II, em 1847. Mas este ano o governo desembolsou efetivamente menos de 4% do R$ 1,68 bilhão previsto. Em 2008, foram 7%. O custo total da obra é de R$ 4,5 bilhões. Nenhuma surpresa para quem conhece o estilo lulista de governar e o abismo entre o que o seu governo faz e o que ele diz que faz.
Para o reinício da campanha, Lula inventou um giro de três dias para "vistoriar" as obras de transposição do Rio São Francisco ? por sinal, o mais controvertido empreendimento do País ?, o que lhe permitiu percorrer o território eleitoralmente seguro dos sertões de Minas, Bahia e Pernambuco, com pernoites em acampamentos, como dizem seus assessores, à maneira de Juscelino Kubitschek ao tempo da construção de Brasília. Entre uma "inspeção" e outra, uma confraternização e outra, um discurso e outro, tudo o que se prestar à humanização da figura da ministra deve ser aproveitado. Pouco importa o caráter postiço, quando não o ridículo, da oportunidade fabricada, como a fingida pescaria da dupla às margens do São Francisco, na região de Pirapora (cidade mineira excluída do tour por ter um prefeito do DEM).
Por atos e palavras, um carnaval de embromação. Em Buritizeiro, do outro lado do rio, Lula subiu a um palanque para dizer que "no nosso projeto original de fazer essa viagem não estava previsto a gente fazer comício", mas "fazer uma sinalização para o Brasil e para o mundo" (sic). Ao seu lado, além de Dilma, três ministros e o deputado Ciro Gomes, do PSB, ex-titular da Integração Nacional e candidato presidencial declarado. Lula, que não perde ocasião de afagá-lo ? agora diz "adorar", tanto quanto adora Dilma ?, quer vê-lo disputando o governo de São Paulo, para atacar, pela retaguarda, o tucano José Serra, como, de resto, já começou a fazer com a costumeira incontinência.
"Esse trabalho vai ficar para a história do povo brasileiro", entoou o presidente, depois de criticar os "governantes de duas caras" e os políticos que governam "para os coronéis que há 500 anos mandam neste país". É um acinte. Lula se vangloria de ter a coragem de pôr em marcha uma ideia que remonta ao imperador Pedro II, em 1847. Mas este ano o governo desembolsou efetivamente menos de 4% do R$ 1,68 bilhão previsto. Em 2008, foram 7%. O custo total da obra é de R$ 4,5 bilhões. Nenhuma surpresa para quem conhece o estilo lulista de governar e o abismo entre o que o seu governo faz e o que ele diz que faz. Não é o caso, evidentemente, do 1,5 mil moradores de Barra, na Bahia, arregimentados para ouvi-lo e conhecer a sua candidata. Uma delas, mãe de 7 filhos e cliente do Bolsa-Família, exultava. "Posso morrer agora que vi o presidente Lula", proclamou. Ela não era a única a dizer que votará "em quem o presidente pedir".
São reações compreensíveis. O que não se entende, como apontou a colunista Dora Kramer, no artigo Uma nação de cócoras, publicado ontem, é a passividade da oposição diante do absoluto descaramento com que Lula transgride a legislação eleitoral, confeccionando, com recursos públicos, pretextos que não resistem a um sopro para fazer a campanha da ministra. O governador Aécio Neves, que disputa com Serra a indicação do PSDB, deu um exemplo dessa leniência, no primeiro dia da viagem do presidente. Antes de se encontrar com ele no aeroporto de Buritizeiro e posar para uma foto com Dilma e Ciro Gomes, considerou "natural" o comportamento de Lula para "viabilizar uma candidatura" no seu campo. "Acho que o presidente tem todo o direito de viajar pelo País", opinou, numa entrevista. "Acho que essas viagens são legítimas, da mesma forma que nós, do campo da oposição, de forma extremamente respeitosa (sic), temos que ter a nossa estratégia."
O temor aos 80% de popularidade de Lula ? que é o que provavelmente explica a complacência oposicionista ? acaba funcionando como um incentivo para ele intensificar as suas operações de propaganda eleitoral sob a aparência de atos administrativos que evidenciariam a suposta operosidade do seu governo.
Estadão